domingo, fevereiro 10, 2008

Dois cafés e o Diário de Notícias


Saio à rua e sinto o frio cortante e húmido que vem do rio. O dia está bonito, com o céu limpo, azul como só aqui, e eu levanto a gola do casaco e afundo as mãos nos bolsos.

Nunca gostei de usar luvas.

Vou a passo certo, nem lento nem rápido. Lanço um olhar de cumprimento ao Luís , ao António e ao Fernando, imortalizados no bronze, e desço a Rua Garrett. Olho de relance para a montra da Picadilly e sorrio ao olhar o lema do Grandella.

"Sempre pelo bom caminho, e segue."

A cidade manda-me seguir e eu sigo. Sinto o cheiro bom da maresia, e penso que deve ser triste não viver perto do mar. Atraso-me um pouco ao olhar a montra da Bertrand, que é agora a minha segunda casa, e lanço um cumprimento para dentro da Luvaria e Chapelaria Ulisses.

Continuo a descer. Compro o Diário de Notícias e entro no Nicola, e o senhor António pergunta pela família, e depois, com o ar resignado:

"Vem sozinha, menina?"

Eu aceno com a cabeça, sim senhor, estou sozinha. E ele pergunta, apesar de já saber a resposta:

"São dois cafés?"

E na mesa onde me sento sozinha ele coloca dois cafés. Ele sabe que eu vou apenas beber um. Um dos cafés, aquele que está no lugar vazio à minha frente, não será tocado. Sem ler o jornal, faço as palavras cruzadas. Quando saio, no entanto, ele diz aquilo que, de certeza, à muito queria perguntar.

"Menina, pede sempre os dois cafés... porque vinha cá com o senhor seu avô, não é?"

Mais uma vez apenas aceno com a cabeça, e ele sorri com ar triste.

"A menina ainda sente muito a falta dele não é?"

Eu sorrio, pago e vou embora. Deixo na mesa uma chávena vazia, e uma cheia com o café frio. Passo no espelho do Rossio, "Aprume aqui a sua gravata", ajeito o cabelo e lembro-me que o meu avô compunha-se sempre em frente a este espelho.

Acendo um cigarro e lanço novo olhar ao Nicola. O Sr. António é como todos os outros. Nunca vão entender que o meu avô pode já não beber o café, mas senta-se comigo na mesa do Nicola, como sempre fez. O simples facto de ter aquela chávena sozinha à minha frente permite-me uma conversa interior com o meu grande compincha. Contar-lhe tudo. Que trabalho no que gosto, numa empresa antiga e com tradições. Que o meu livro está quase pronto, e que tenho pena que ele não o leia. Que quando conduzo, no rádio vai tocando Frank Sinatra e Charles Aznavour, Carlos Gardel e Astor Piazzolla. Que não trago ninguém comigo ao Nicola, porque este era o nosso café, a nossa mesa. Que cada vez estou mais parecida com ele, os traços da cara, as mãos calejadas, os óculos a escorregar pelo nariz enquanto faço as palavras cruzadas. A voz rouca do tabaco, a maneira de fumar, os ideais e as ideias, os gostos e as manias.

Nunca ninguém vai entender, mas não é preciso que entendam. Há coisas que temos de fazer sozinhos, recordações que só têm sentido se as sentirmos sozinhos.